COLUNA DE MANUEL FRAGATA DE MORAIS - O PADRE (In A SEIVA - CONTOS ANGOLANOS)
Com aquela mania de sempre andar com um pequeno canivete nas mãos, usado para cortar as cabeças dos sardões menos lestos, ficara apodado de Zé Canivete. Não que fosse congenitamente maldoso, todavia o mato, a natureza, com suas leis inexoráveis, desenvolvia em nós crianças rurais, sensações e actos que se integravam plenamente na sua essência e manifestações.
Que diferença haveria entre um Louva-a-Deus a triturar em suas poderosas mandíbulas verdes uma cigarra, trinando angústia estrídula no despedir da vida, e o Zeca Canivete a agarrar o sardão para o decapitar a fim de que pudéssemos observar, com eterno pasmo e expectativa, o seu corpo estrebuchar?
O que poderá parecer insensibilidade, talvez sadismo precoce, era o exteriorizar das leis que a natureza revelava e imprimia subliminarmente. Se a inocência se caracterizava nos brinquedos de bordão que construíamos, a lâmina afiada na pedra era a possibilidade de domar o inexplicável, neste caso, a vida ou a morte, no mesmo rito que a cobra engolia o passarinho indefeso em encantamento.
No meio de todos os fantasmas, monstros e seres indescritíveis que a imaginação produzia, sentíamos sobremaneira a poesia da crueldade como sublimação das sensações. O subconsciente, transfigurado no medo ao relâmpago, por exemplo, era algo que não nos cabia entender, vinha dos primórdios do gesto humano. Em termos reais era-nos tão estranho quanto o haveria de ser para o sardão ao lhe ser cortada a cabeça.
Deste modo, arremessávamos na balança da vida o contraponto dos valores, permitindo o seguir do curso natural de um rio ora mais fundo, ora mais raso, em queda, tormentoso ou sereno, conforme se afunilasse ou espraiasse. Se nosso crescer fosse suas margens, restava-nos aprender efectivamente se era o rio que as fazia, ou elas que o controlavam, que ditavam a personalidade da sua fluidez e caminhos.
Só mais tarde, muitos anos mais tarde, por paciência ou por imbecilidade, encontramos algumas das respostas que, quiçá, nos tranquilizem o suficiente para justificarmos o instinto, a agressividade do animal ainda tão perto da caverna há pouco abandonada.
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