Prosa Poética de Ilona Bastos - VER CLARO - Anna
Com decisão súbita, pragmática, avançou para a secretária e debruçou-se sobre o bloco. Caneta em riste, corpo curvado, desenvolveu frenéticas contorções na superfície do papel. Afastou-se, depois, olhando o emaranhado de letras e palavras desenhadas. Esplêndido. Para começo não estava mau. Três ou quatro frases perfeitamente fulgurantes.
Deu um pulo na cadeira, atirando com a esferográfica. Exuberante, apanhou a mala, de um rasgo. Da porta, acenou adeus aos processos e aos outros, quase esvoaçante. Pela escada (pois o elevador avariara-se, à custa de tanta monotonia transportar), de degrau em degrau, fez-se à rua.
Da entrada avistou o mar empedrado do passeio. Logo após, a corrente electrizante dos automóveis. Além, a paisagem da aventura: o céu, aberto até ao horizonte, as nuvens a afastarem-se, empurradas pelo vento, a uma velocidade vertiginosa.
«Claro!», pensou. Era necessário atravessar a rua e, da outra margem, vigorosamente, acenar a um táxi. Depois, lá dentro, a magia do imprevisto...
«Para onde? Diga!». Uma cabeça de contornos vagos, o pescoço rude, engelhado, o cabelo algo oleoso.
Do discurso, confuso, tudo ou nada se podia concluir:
«Desejo ir para a Africa, onde há crianças e adultos a sucumbir à fome, às doenças e à guerra. Quero despojar-me destas roupas, e das lianas que na cidade me tolhem os passos. Decidi tudo dar aos outros, desde a minha insegurança, timidez e imperícia, aos meus gestos de carinho, de ternura, de sede de paz... Compreende, tudo isso é necessário libertar, fazer vibrar... Porque a vida é assim, o que não pode deixar de ser... Também quero ir para o Tibete. Pois se vou, quero ir até aos limites extremos. A ausência daquele que vai tomar café à esquina é absolutamente igual à daquele que escala montanhas, mochila às costas, em alturas colossais, buscando a paz e o infinito. Não acha? Se posso ter tudo, porque hei-de ter nada?»
O veículo pôs-se em andamento, o olhar do motorista, astuto, espantado, erguido para o espelho retrovisor. Depois, soou uma música, inesperadamente calma:
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