Os «meus» saltimbancos - Crónica de Daniel Teixeira
A referência a saltimbancos tem estado desde sempre relacionada com sendo «mais» uma forma de mendicidade e reconheço que nem sempre é assim, mas os trabalhos e os dias assemelham-se tanto, nesta nossa antropogonia, que existe alguma dificuldade em diferenciar uma, mais fortemente mesclada de alguma arte e destreza da outra que não tendo «tanta» arte tem no entanto necessidade de ser envolvida por técnicas específicas que vão resultando da aprendizagem e do saber fazer.
Uma jornalista de um órgão de comunicação social de topo, cujos nomes não me ocorrem agora nem serão importantes para o desenvolvimento deste texto, «mascarou-se» de mendiga na baixa lisboeta e procurou saber como funcionava o sistema. Porque havia um sistema: lugares marcados em determinados pontos considerados chave para recolha de «boas» esmolas, pontos considerados menos bons mas onde a simpatia e a técnica podiam obter melhores resultados, enfim.
Temos ainda presente e aparecido em flash agora na minha memória um famoso caso de Sherlock Holmes em que um indivíduo levava uma vida dupla recolhendo boas esmolas ao recitar trechos de Shakespeare e em função disso vivia uma pacata vida quase luxuosamente burguesa com mulher e filhos que evidentemente não sabiam de nada.
A ficção portuguesa tem também seguido este fenómeno da mendicidade, caso de «A Caixa», filme de Manuel de Oliveira baseado numa obra de Prista Monteiro, que se distinguiu este último por, por vezes, mostrar como um simples objecto, desejado, ostentado ou perdido, pode ser a pedra-de-toque para pôr em causa um sempre artificial equilíbrio social.
Ora, estes indícios, mostrados por Prista Monteiro nas suas obras, são ao fim e ao cabo aquele pequena pedra cuja colocação em determinado ponto é essencial para que, neste caso e neste texto que escrevo, se possa divisar a para nós ténue distância entre a mendicidade «pura» e o artista saltimbanco e a potencialidade de mistura entre eles.
Nos meus tempos de criança, apareciam por vezes numa larga rua de terra batida na minha vizinhança aquilo a que chamávamos uma família, composta por um pai, uma mãe e um único filho, talvez com dez anos, não mais, que fazia os seus contorcionismos e equilíbrios no topo das costas de uma cadeira, fazendo pinos, cavalo de arção e saltos mortais.
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