sábado, 19 de janeiro de 2013

UMA MULHER A PARIR A SUA ALMA - Texto Recolhido em «As Leituras de Madame Bovary»

 
UMA MULHER A PARIR A SUA ALMA - Texto Recolhido em «As Leituras de Madame Bovary»
 
2012 foi um ano estéril em paixões. à parte alguns arrufos inconsequentes, não amei nenhum homem nem nenhum livro. Foi por isso um ano estranhamente bom, ocupado na aprendizagem de uma solidão interior, calma e insuspeita. Até aqui, houve sempre alguém, como diz a Mick em The Heart is a Lonely Hunter, e houve sempre um livro, a tal ponto que a escrita da minha história da leitura se confunde com os meus amores e desamores.

Como o desejo se desloca da minha carne e encontra um livro, é algo misterioso. Como uma operação alquímica. Nalguns casos, o desejo é encaminhado por um terceiro, noutros casos, mora já em minha casa. Mas continuo a preferir os encontros fortuitos na biblioteca, quando as minhas mãos e olhos escutam o apelo de um livro manuseado, que não figura na lista dos livros que gostaria de ler, e o encontram doído de colos ausentes. Com estes livros feridos por outras mãos, sinto sempre uma maior liberdade de tacto, como se fosse mais fácil imprimir-me neles antes de os devolver à sua posição enigmática.
 
Desta vez, o acaso aconteceu com os diários de Etty Hillesum na Biblioteca de Portimão, a biblioteca da minha adolescência nietzscheana. Uma surpresa deliciosa, considerando que a questão judaica nunca me interessou muito, porque demasiado absolutizada nos pólos vítima - carrasco. Chamou-me uma vez: ignorei, outras leituras se impunham. Chamou-me mais uma vez, fui até ele e li a contracapa, tornei a pousá-lo, outras leituras se impunham. Chamou uma terceira vez, caminhei até ele com passos resolutos e abri-o sem qualquer pudor:

«Terça-feira de manhã [17 de Março de 1942], às nove e meia

Ontem à noite, quando ia ter com ele de bicicleta, havia um grande e aprazível desejo de primavera em mim. E enquanto eu pedalava em cima do asfalto da rua Lairesse, desejando-o e com sonhos na cabeça, senti-me de repente acariciada por um ar tépido de primavera. E subitamente pensei: «Assim também está bem. Porque é que uma pessoa não pode experimentar uma grande e terna euforia pela primavera e, também, por todas as pessoas?» (…) Sim, por que razão é que uma pessoa não poderia sentir amor por uma primavera? E as carícias do ar primaveril eram tão delicadas e tão envolventes, que mãos masculinas, mesmo que fossem as dele, em comparação com elas me haveriam de parecer rudes.
 
 
 
 
 


 

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