Poesia zero - Conto de Daniel Teixeira
O Sotero C., lá pelos idos de 70/80 arrancou grandes aplausos com o seu original poema avant garde que dizia mais ou menos assim verso a verso: zero, zero, zero, alternando o número de zeros extensos escritos verso a verso durante uns dez «versos» para culminar num apoteótico final ressaltando abaixo do espaçamento das linhas com um gritado (em letra maiúscula) «Zero à esquerda!»
A questão que me preocupou é que durante muito tempo fiquei sem saber se as pessoas aplaudiam o «poema» porque eram boas pessoas, se era porque tinham «pena» do poeta ou se o poema deveria mesmo ser considerado bom e eu fui o único a não o entender.
Encontrei este poeta depois de longas ausências e desencontros numa cama de hospital depois de ter sido atropelado numa daquelas escuras estradecas interiores no campo.
Levei-lhe aquelas coisas que normalmente se levam aos doentes, bolachas, sumos e deixei-lhe dois maços de cigarros escondidos a seu pedido no fundo da gaveta da mesa de metal que fazia de mesa de cabeceira. Conversámos um bocado, pouco porque ele estava nitidamente pouco compensado psicologicamente, mas tivemos ainda oportunidade de recordar o seu poema de tanto sucesso.
Com os olhos ainda semi-inchados das feridas e com um brilho quase lacrimejante lá me foi dizendo, um dia em que se sentia melhor, que tinha sido esse tempo do poema o seu maior momento de glória na vida que agora ali jazia vai não vai depois de ter andado quase na mesma durante muitos anos.
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