Ano novo (de)novo - Crónica de Abílio Pacheco
Não são raras as pessoas que dizem que o ano novo é apenas mais um dia, comum, como outro qualquer. Eu mesmo ajudo a aumentar a fila, mas fico meio de banda, pois de um ou outro modo um (novo) ciclo (re)inicia. O mundo continua o mesmo, igual, mas renovado, renovável.
A «ficção de que começa alguma coisa!», como afirma Fernando Pessoa, ou «truque do calendário», como prefere Mário Quintana, ou ainda «o milagre da renovação» em meio a «industrialização da esperança», como afirma Drummond, é coisa de apreensão movediça e cabe para ela um conceito a ser tirado de cada cabeça, ou até da mesma cabeça em momentos diferentes da vida.
Que o mundo se renova, que há ciclicida, isso é fato. Basta ver que o sol está aí a cada dia ou que as árvores se despem e se vestem repetidas vezes. Mas algumas renovações (e no de correr do ano existem outras, não é só na noite da virada) são constructos da nossa vida social e que tentamos transformar em fundamento psicológico, às vezes com efeito psicossomático. Daí que, querendo ou não querendo, entramos na renovação necessária para a vivência social.
E para que nós nos sintamos definitivamente nesta construção (ficção, truque, milagre) tome entregas de relatórios do ano passado, matrículas em escolas, impostos a pagar, novos chefes de executivo, calendário novo na parede e no pensamento… Mas as dívidas do ano passado permanecem, o salário magrinho do dezembro trabalhado vem lembrar nossa miséria de mais valia neste imundo capitalismo, os problemas do ano passado mas recentes acordam-nos de madrugada, até nossos dejetos ainda são de antes dos fogos. O ano velho, de fato, parece que demorar a finar de vez.
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