Um dia novo, cada manhã - Conto de Arlete Piedade
Como não celebrar a vida, mesmo que o coração enfraquecido bata tão devagarinho e os pés tenham que tactear para descer as escadas do primeiro andar?
Como não querer viver, se por dentro dos vidros da janela do rés-do-chão em frente, um fofo gato preto e branco, espreita quem passa, qual almofada animada que por vezes se aninha dormitando ao sol?
Como não sentir a alegria da vida, quando na rua, passa um menino que acena rindo em direcção á janela do primeiro andar, onde o homem idoso espera por ele, para lhe dizer bom dia?
E diz-me ele: «Não havia aí um pássaro, que canta? Ele é meu? Ele canta para mim?» - Sim, é o seu canário, ali na marquise. Está a cantar, está contente.
E acrescenta espreitando o terraço que se estende nas traseiras do primeiro andar com uma arrecadação ao fundo: «Aquilo ali ao fundo também é meu? E as árvores, com aqueles frutos, que abanam ali do lado?»
Pacientemente respondo pela décima vez: Sim, é a sua arrecadação onde tem o seu escritório e os seus livros. é sua, e o terraço também. Até aquela parede branca. Do lado de lá é o quintal da vizinha, com a laranjeira e as laranjas.
As árvores abanam ao vento forte deste inverno. Mas ele quer saber porque abanam, como um menino que descobre o mundo. - é o vento que sopra e faz as árvores abanar - Explico pela décima vez. Ele ri deliciado com o mundo que redescobre todos os dias.
Senta-se á mesa da sala em frente da televisão. Olha em volta e espreita para a cozinha ao lado. Aponta: «E ali? Que é aquilo? Também é meu?»
- Sim - Respondo com voz calma - São os armários da cozinha. E também são seus. E a cozinha também.
- Sim - Respondo com voz calma - São os armários da cozinha. E também são seus. E a cozinha também.
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