«Hoje não ouvi a chuva» - Crónica de Gociante Patissa(Do arquivo-2008)
Tinha começado a chover sem que desse por isso.
Estava por demais embalado nas cogitações peregrinas típicas de um jovem, o sonho por um big-bang que traga a namorada, o emprego ideal, o carro e a habitação num só semestre. Como se pode ver, é demasiada carga de expectativas para sobrar tempo algum para atender os restantes órgãos dos sentidos. A percussão das gotas da chuva que tocavam o tecto de zinco, de tão homogénea, aos meus ouvidos se confundia com uma bela sinfonia melancólica, que era o que mais apetecia.
Entretanto, uma gota intrusa tocou-me o ombro, num misto de arrepio e frio, frio também atípico nesta era de aquecimento global. Olhei à minha volta, desta vez com olhos de ver, e notei a presença do garçon que, talvez já acostumado a lidar com portadores de utopia, estava há muito parado à minha frente. Era evidente no seu olhar o dilema: hora de fechar o caixa e ao mesmo tempo não me querendo incomodar. Foi inevitável o instinto. Reparei o peito do conterrâneo, viciado que estou a fazer o mesmo com as moças por questões de pesquisa (só isso!). Na verdade, e o digo depois de observar em tudo quanto é bar e lanchonete, as atendedoras têm quase sempre uma característica comum: o peito achatado. Mães solteiras, adolescentes com etapas queimadas, atrás do prejuízo.
Devia ser demasiado educado o garçon, para se deixar empatar por um cliente que há tanto tempo nada consumia. Seria até legítimo da sua parte tratar-me mal, recorrendo à (quase cultural) atitude de supremacia dos atendedores.
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