Amar um livro - Texto recolhido em As Leituras de Madame Bovary
No início, havia o campo, os invernos rigorosos e uma estranha guerra ocupava os dias. O corpo era muito magro e frágil mas vingou ao abrigo da comunhão com os livros, os cães e os irmãos. Assim se constituiu a sua ideia pessoal de felicidade: uma cama, um livro, um cão e um amante que fosse também um camarada. Terá sido então que os livros se entrelaçaram com o erotismo numa enigmática mas bela coincidência.
[O pai estava ausente: sentado no sofá, fumava cigarro atrás de cigarro e lia um livro grosso. Complexo de Electra. Livros e cigarros: uma compulsão fálica de inspiração -expiração.]
Dos livros recebeu, portanto, a sua educação sentimental e o gosto pelas palavras certeiras. A sua segunda pele. Anos mais tarde, ao deixá-los empacotados num sótão amigo para viajar durante um ano sentir-se-á estranhamente livre e nua. A doença do livro colou-se aos ossos. As noites serão perdidas para a insónia, na angústia da vida não durar nem para metade dos livros que deseja.
Sentirá sempre que não se pode ler um livro sem ter lido todos. Por consolo, conceberá a ideia de paraíso - biblioteca. No entanto, terá sempre as suas poupanças empenhadas, penará sempre que muda de casa e irá cometer muitas imprudências na vida, tentando igualar a beleza da arte.
Irá sofrer mas nos ombros sentirá sempre asas prestes a despontar. Aprende-se mulher, cativa-se na ideia de um amor louco. Enternece-se com os desvarios de uma tal Madame Bovary, parece que escolheram ambas viver mal mas poeticamente. Por vezes vacila, as pernas já não prestam para andar, mas sempre acha novo vigor em poemas (ou serão elegias?) como o de Alexandre 0’Neill:
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