O Crime do Poeta - Texto Recolhido em «As Leituras de Madame Bovary»
Era uma vez uma criança estranha. Na aldeia onde cresceu todos a temiam. Os mais antigos diziam que os seus olhos grandes e violetas traziam mau agouro.
As línguas mais desocupadas avançavam que a criança tinha pacto com o demónio. A própria mãe desconfiava da criança desde que o seu corpo começou a crescer dentro de si. Pensara até ao momento do parto que trazia dentro do seu ventre um nado-morto. - Senhor doutor, não pode ser. Nem um pontapé, nem um movimento, nada. Alguma coisa está mal. O médico sorria e acalmava a mãe com ecografias e evidências científicas:
- Não se preocupe minha senhora, é um bebé forte. Olhe, deve ter um feitio muito calmo. Traz aí um santo ou santinha, é o que é! E de facto, a criança nasceu e cresceu. Forte e quieta. Esse sossego continuou a alarmar a mãe. Recordava-lhe a quietude antes dos grandes vendavais da sua terra. Por isso, a mãe espiava a criança a toda a hora.
Um dia, quando a criança tinha sete anos, a família decidiu fazer uma viagem de sete dias pelo país. Visitaram as cidades mais importantes, mosteiros, serras e castelos. No caminho de regresso, fizeram um desvio por uma estrada antiga que serpenteava a costa marítima. A criança nunca tinha visto o mar. Entrou em frenesim no banco de trás, parlando incessantemente e suplicando que parassem uns instantes para ver o mar de perto.
O pai concedeu mas disse que o faria no local mais bonito, para que a criança visse o mar a tentar tomar a terra. A criança acatou a decisão em desassossego. A mãe seguia com o rosto colado no pára-brisas, aterrorizada pela mudança súbita de comportamento, repetindo de si para si: - Apenas uma criança, apenas uma criança que vai ver o mar pela primeira vez. Apenas isso, Maria.
Mas as mães têm sempre razão, uma razão secreta que adivinha os sismos nos corações dos filhos. O pai parou o carro e saíram todos, a mãe com medo, a criança com passos decididos e eufóricos. O pai ia explicando que aquele lugar se chamava Boca do Inferno porque se diziam que aquelas águas estavam destinadas a engolir a terra.
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