Esperança - Texto recolhido em As Leituras de Madame Bovary
Habito nesta casa velha de três andares há mais de 40 anos. Conheço cada canto escuro de humidade, o ranger frágil das escadas de madeira que atravessam todos os andares, as zonas que o sol ilumina fortemente de manhã e as curvas por onde passa no seu ocaso.
Conheço intimamente as manchas de café nos sofás com motivos florais gastos na sala de estar onde já ninguém está, a poeira instalada de modo persistente nos móveis antiquados, os quadros de todas as estações enquadrados por cada janela desta casa silenciosa.
Nasci no quarto de meus pais, no segundo andar, em 1913, numa tarde pontuada por uma chuva mansa e persistente, apenas perturbada pelos gritos de agonia da minha jovem mãe, que aumentaram de intensidade quando a parteira lhe mostrou o meu corpo prematuro e violeta e minha mãe se apercebeu de que o seu primeiro filho era uma menina de olhos excessivamente grandes, morta à nascença.
Penso que minha mãe nunca recuperou verdadeiramente daquela perda e que uma parte da sua juventude e alegria ficou para sempre encerrada no meu rosto violeta.
Recordo o seu empenho e diligência em escolher-me um nome para colocar na lápide de mármore e a sua exigência ao severo padre da aldeia em baptizar-me numa cerimónia em que ninguém compareceu para além de minha mãe, nem sequer o meu pai, que decidira sofrer em silêncio e só, observando de quando em quando minha mãe, para se certificar de que esta não tinha perdido o juízo.
Sem comentários:
Enviar um comentário