sábado, 14 de setembro de 2013

Debaixo do mesmo céu - Um conto retirado de «As leituras de madame Bovary»

 
Debaixo do mesmo céu - Um conto retirado de «As leituras de madame Bovary»
 
Conseguia ver-se uma ampla planície do Alentejo, com um sobreiro, glorioso na sua solidão, a suportar o quebrado pôr-do-sol violeta, que inundava a alma de Elisa, de fantasmas antigos e saudade, sentada de olhos fitos no horizonte, num poial de pedra branca e gelada.
 
Com a mão esquerda ia pescando punhados de terra que levava à boca de modo intermitente, e observava aquele sobreiro, que sabia-se lá há quanto tempo ali estaria, olhava o seu tronco rugoso acastanhado e os seus braços esguios semi-cobertos pela doença da cortiça, o ténue verde da sua copa e angustiava-se no pensamento de que aquela árvore lhe sobreviveria, tentando descortinar o segredo da sua longevidade.
 
Aquela árvore fora testemunha de várias espécies que por aquelas terras passaram e permanecia sólida na sua certeza altiva de que todos passariam menos ela. Elisa ia comendo compulsivamente terra, procurando a comunhão com aquele ente que ela suspeitava ser Deus, testemunha da progressiva degradação da espécie humana.
 
Provavelmente, remontava ao tempo dos dinossauros, e um dia a última matriarca dessa raça há muito extinta também contemplara a árvore e percebera pelos insanos raios violetas que a atravessavam, que nada era capaz de deter o curso do mundo, que o seu ventre se tornara infértil e que aquela paisagem era um prenúncio de viragem.
 
Quanto tempo passara? Há quanto tempo estava ela ali, gelada numa presença espectral de estátua? Qual era o seu nome? Donde viera e que história era a sua? Olhou em pânico para as suas mãos secas e pareceu-lhe que também estas eram de madeira, pousadas sobre um regaço húmido com cheiro a terra molhada, devassada pelo labor das charruas e dos bois.
 
 
 
 

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