segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Realidade fictícia - Conto de João Furtado


Realidade fictícia - Conto de João Furtado 

 Não consigo escrever. Vivo este vazio sempre que termino um conto e quero começar a escrever outro. E à  minha volta é o nada. Nada me sai da cabeça para o papel. A febre que sinto enquanto coloco no papel as minhas ideias mais ou menos formadas se esvazia rapidamente.

Sinto uma paz interior, o mesmo que se sente após o orgasmo. E a mesma vontade de continuar e não poder. Já fui ao computador várias vezes, mas abro, jogo uma ou duas partidas do «solitário», ganho e perco, volto a levantar-me, após fechar o computador, nada sai mesmo, nada de nada. Esforço a memoria faço o filme da minha vida passar vertiginosamente desde o meu nascimento até hoje. Faço projecção para um futuro incerto de mil maneiras, mas nada. Tudo em mim é informe e vazio. Não resta nada a fazer senão esperar.

 Posso passar assim algumas horas ou mesmo dois ou três dias. Sem nada poder fazer, brinco com a minha netinha. Deixo ela fazer-me de bebé, o que ela adora. Com o seu pouco mais que um ano, ela adora me dar de comer, me mandar abrir a boca, para ver se tenho algo de errado nela. Ela coloca-me coisas, como a caneta electrónica, na boca, para me repreender. Ou seja o que lhe faço, ela me faz com todo o prazer.

 Imagino a historia que gostaria de contar, as palavras me faltam, estou na fase do vazio completo, deixo de ter capacidade de imaginar. A minha mulher fala comigo e eu nem ouço. Ela repete e torna a repetir, eu continuo longe, no mundo de ninguém. Ela me repreende dizendo que devemos estar mais presentes neste mundo. Eu nem ai, bem, para dizer a verdade, sempre preferi o meu mundo.

 Vem à mente o quanto sou prejudicado por viver num mundo só meu, mas agora mais do que nunca estou no meu mundo. Lembro com tristeza que tenho sido escada para muita gente subir no meu trabalho. Mas que a possibilidade de subir é para mim escassa, isto porque preciso ser deste mundo. Aproveitar as oportunidades, saber ser um pouco engraxador.


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