sábado, 30 de agosto de 2014

A estrutura da bolha de sabão - Por Lygia Fagundes Telles


A estrutura da bolha de sabão - Por Lygia Fagundes Telles

 Recolhido no Blogue Panorama - Pedro Luso de Carvalho


 Era o que ele estudava. «A estrutura, quer dizer a estrutura» - ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso, porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. «A estrutura da bolha de sabão, compreende?»

Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal de minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque, se me afobava, o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe o canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? «A estrutura» - ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô a paciência. A paixão.

 No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da água, mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da pele, ô, amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparência e membranas, condenado à ruptura.

 Ainda fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava. Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: «Vocês já se conheciam?»

Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus olhos de egípcia se retraíam, apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim. Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de ideias, peças soltas dum jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.




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