domingo, 30 de setembro de 2012

 
UMA VIDA - Conto de Ilona Bastos
 
Segunda-feira - nove da manhã.
Entro para tomar um café. A esta hora, a pastelaria está cheia de gente, e os meus pensamentos são confusos. Anseio pela dose matinal de cafeína. Aproximo-me do balcão e, instintivamente, os meus olhos procuram o António, o empregado moreno e simpático que costuma reconhecer-me com prontidão e atender-me rapidamente.
 
Mas hoje o António não está atrás do balcão, como o fez durante quinze anos. Com choque, recordo-me de que partiu, no sábado passado, e de que em seu lugar foi contratado o Fernando, de cabelo branco e gesto atento.
 
Tolda-se-me o olhar e o espírito ao pensar no António e no que sobre ele aprendi na última semana.
Enquanto, maquinalmente, peço uma bica e observo o movimento de mãos, talheres, pires e chávenas, junto à máquina do café, lembro-me do antigo empregado. Habituada a vê-lo a todas as horas do dia (de manhã, ao almoço, ao lanche, e à saída, por volta das oito da noite) recordo-o frenético, imparável.
 
Febrilmente, não cessava de arrumar os bolos, limpar o balcão com um pano amarelo, servir cafés, embrulhar sanduíches e (parece-me, embora não o possa jurar) beber disfarçadamente uns goles de uma bebida que eu não conseguia identificar.
 
Suspeitava, portanto, dos seus braços de mangas arregaçadas, do seu olhar brilhante, do seu semblante demasiado corado, do seu murmurar por vezes incompreensível. Mas comovia-me a sua dedicação extrema à função, o saber do drama familiar que o privara da convivência com a mulher e o empurrara para um quartinho diminuto numa cave, de onde partia uma fileira de vasos, que aí colocou, com plantas variadas, que tão terna tornaram a entrada do edifício, até que a poeira, o vento e a chuva embaciaram as folhas e mataram as flores.
 
Só hoje sei como o quartinho da cave era pequeno e húmido, tão pobre e sem janela. Só hoje sei que ali existe uma cama de ferro com um colchão alto, forrado por uma colcha às flores, sobre a qual se acomodam duas almofadas. Só hoje sei que o acesso à cave é mais triste do que outrora imaginei, que é necessário ligar previamente o interruptor velho para que, em seguida à abertura da porta, não se rebole pelos degraus que antecedem o aposento. Só hoje sei que por detrás de uma cortina de tecido modesto se arrumam baldes e apetrechos de lavagem da escada. E foi aí que o António viveu.
 
 
 
 
 

 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário